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Haiti: Da Revolução de 1804 à crise atual https://link.medium | Socialismos - Canal ☭

Haiti: Da Revolução de 1804 à crise atual

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Essa revolução, a "mais complexa e mais completa" da história moderna, ainda nos termos de Bosch, combinou um grande número de arestas e dimensões que começaram a ser elucidadas com o trabalho pioneiro do C.R.L. James. Esta foi uma revolução antiescravista bem-sucedida que aboliu a escravidão 59 anos antes dos Estados Unidos e 88 anos antes da Lei Áurea no Brasil. Foi uma revolução social que mobilizou as massas escravas contra a oligarquia proprietária, e que, em algumas de suas tendências, também expressou reivindicações anti-plantacionistas e, portanto, anti-capitalistas. Foi uma revolução descolonizante que recorreu aos elementos fundamentais da então germinação da cultura nacional haitiana, tais como a língua crioula, o vodu e a prática do cimarronaje. Foi uma guerra racial e anti-racista que colocou escravos negros e libertos, mulatos e brancos, em coalizões diversas e flutuantes. Foi uma revolução que, na mencionada Constituição de 1805, consagrou direitos avançados para as mulheres, tais como o direito ao divórcio. Foi uma guerra internacional com fases defensivas e ofensivas que envolveu o próprio Haiti com seu projeto de decretar a liberdade do outro lado de uma ilha então considerada "una e indivisível" por Toussaint Louverture, as tentativas de restauração da metrópole francesa, e os interesses geopolíticos entrecruzados da Espanha e da Inglaterra. E foi, finalmente, uma revolução nacional e independente que garantiu a soberania popular da ilha e a separou do império colonial francês no Caribe.

No entanto, este ato humano é quase tão desconhecido hoje como era há dois séculos atrás. Basta mencionar que Eric Hobsbawm, um escritor canônico da esquerda acadêmica, foi capaz de escrever um livro como The Age of Revolution, 1789-1848, no qual a revolução haitiana é relegada a duas menções sumárias e uma nota de rodapé, como nos lembra o historiador haitiano Michel-Rolph Trouillot. Sem mencionar o que aconteceu na historiografia francesa após a derrota colonial do melhor exército armado e mais experiente do mundo, a perda irremediável de uma colônia fabulosamente rica que foi ao mesmo tempo o centro de experimentação de um modelo de produção não-clássico do "capitalismo escravo", como mostra o estudo pioneiro de Eric Williams. Ali, a reação inoportuna ordenada por Napoleão foi a proibição virtual de qualquer menção ao Haiti na literatura, na historiografia e nos outros suportes da memória nacional-estatal. Levaria 206 anos após o gesto revolucionário para um presidente da antiga metrópole visitar o Haiti, e não sem a pressão gerada pelo devastador terremoto que atingiu a ilha em janeiro de 2010. Em março, o ex-presidente Jacques Chirac declarou: "O Haiti não tem sido, a rigor, uma colônia francesa".

O processo de recolonização comandado pelas oligarquias regionais e nacionais da América Latina e do Caribe, sejam plantadores ou proprietários de fazendas, teve como objetivo assegurar a continuidade, em seus contornos fundamentais, de uma estrutura de classe racializada. Para desmobilizar as massas indígenas, negras, mestiças e/ou camponesas que haviam formado os exércitos de libertação e imposto alguns dos pontos programáticos mais avançados. E sustentar, agora em substituição das elites branco-crioulas, um regime de acumulação e uma modalidade de inserção dependente e extrovertida no mercado capitalista. No Haiti, devido à profundidade, complexidade e integralidade da Revolução, o processo de recolonização também teve que desmantelar uma série de conquistas legadas pelo próprio ciclo revolucionário, de uma radicalidade que nenhum processo político moderno jamais voltaria a conhecer.