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A voz da linha de frente Gerson Salvador nasceu no sertão d | Se bem me lembro - Olimpíada de Língua Portuguesa

A voz da linha de frente

Gerson Salvador nasceu no sertão da Bahia, mas mudou-se cedo para São Paulo, onde cursou medicina. Infectologista, atua na linha de frente no combate à Covid-19 e relata sua experiência atendendo pacientes no Hospital Universitário da USP. Salvador quebra a expectativa que poderíamos ter no texto de um médico – talvez objetivo, impessoal – com uma prosa que se vale de estilo e de intertextualidade para captar a atenção do leitor, e que se aproxima das Memórias Literárias. Note que ele registra, com preocupação estética, suas vivências. No trecho que destacamos a seguir, ele conta sobre a alta do pai que pegou Covid e chegou a ser internado:

Quero colo. Depois de uma semana de internação, quando parecia não haver mais novidades, o meu pai teve uma mudança no quadro. Felizmente começou a melhorar e usar menos oxigênio a cada dia. No segundo sábado após sua internação eu fui buscá-lo. Alta hospitalar. Com algum cansaço ao se esforçar e com os olhos brilhando ele disse: filho eu te amo. Painho eu te amo. Vocês precisavam ver a cara de rapazinho apaixonado que ele fez quando reencontrou a minha mãe no saguão do hospital!

São meus filhos que tomam conta de mim. As crianças dançaram, pularam e gritaram quando souberam que o vovô estava de alta. Lembrei de quando eu falei para minha filha, a Menina Mais Velha, quando ela me perguntou por que as pessoas morrem. Tudo o que faz parte de seu corpinho e de meu corpo já estava nesse mundo desde a formação do planeta. Nós somos feitos, essencialmente, de pedaços de carbono e de amor. Só existimos porque outros seres vivos morreram e nos permitiram usar o carbono que estava em seus corpos, um dia precisamos devolver esses elementos para a natureza, assim, outras formas de vida surgirão com essas partes de nós. O amor permanece. Posso dormir aqui com vocês? Ela dormiu bem no meu peito, perguntando se poderia ser um passarinho ou cachorrinho e sorriu levinha quando eu disse que sim.”

Destacamos os trechos em que o autor faz uma ponte entre as suas memórias e uma famosa música do grupo Legião Urbana, Pais e filhos, pertinente ao contexto, afinal, aqui se trata menos da voz do médico e mais da voz do filho que se sente amedrontado pelas incertezas de uma doença ainda sem tratamento eficaz. A intertextualidade contribui para o estilo da narrativa ao mesmo tempo em que a aproxima do leitor pela referência muito conhecida, a canção de Renato Russo.

Em suas turmas, um exercício possível é propor aos alunos e alunas o registro de uma memória que eles mesmos viveram e que ainda seja recente, fresco. Procure auxiliá-los/as a dar passos no sentido da construção estética do texto. Tal como mostra o exemplo de Gerson Salvador, não se trata apenas de narrar o que aconteceu, mas de usar recursos linguísticos, como a relação com a música, para que a construção ganhe as tintas da literatura.

Leia o texto Pais e filhos: sobre meu pai internado com covid, na íntegra.

Para aprofundar-se nas questões de estilística nas Memórias Literárias, (re)visite a Oficina 9 – Na memória de todos nós e a Oficina 10 – Marcas do passado, do Caderno Docente Se bem me lembro, produzido pela Olimpíada de Língua Portuguesa.

Saiba mais sobre a 7ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa.