2021-12-17 07:58:28
Vale a pena recordar:
A transfiguração do desastre
Olavo de Carvalho
O Globo, 16 de junho de 2001
Sempre que os esquerdistas querem impor um novo item do seu programa, alegam que ele é a única maneira de curar determinados males. Invariavelmente, quando a proposta sai vencedora, os males que ela prometia eliminar são agravados. O normal seria que, em tais circunstâncias, a esquerda fosse responsabilizada pelo desastre. Mas isto jamais acontece, pois instantaneamente o argumento legitimador originário desaparece do repertório e é substituído por um novo sistema de alegações, que celebra o fracasso como um sucesso ou como necessidade histórica incontornável.
Ninguém compreenderá nada da história do século XX — nem deste começo do XXI — se não conhecer esse mecanismo de justificação retroativa pelo qual se leva o povo a trabalhar em prol de metas não declaradas, que o escandalizariam se as conhecesse e que por isto só podem ser atingidas pela via indireta da cenoura-de-burro.
Alguns exemplos tornarão isso bem claro.
1) Quando o Partido Comunista lançou seu programa de destruição das instituições familiares “burguesas”, consubstanciado no que mais tarde viria a ser a “liberação sexual”, sua alegação principal, elaborada pelo dr. Wilhelm Reich, era que homossexualismo, sado-masoquismo, fetichismo etc. eram frutos da educação patriarcal repressiva. Eliminada a causa, essas condutas desviantes tenderiam a desaparecer do cenário social. Bem, os últimos residuos de valores patriarcais foram suprimidos da educação ocidental entre as décadas de 70 e 80, e o que se viu em seguida? A disseminação, em escala apocalíptica, daquelas mesmas condutas que se prometia eliminar. Obtido o resultado, essas condutas começaram a ser celebradas como saudáveis, dignas e meritórias, e toda crítica a elas passou a ser condenada — às vezes sob as penas da lei — como abuso intolerável e atentado contra os direitos humanos.
2) Quando a esquerda mundial começou a lutar pela legalização do aborto, um de seus argumentos principais era que o grande número de abortos era causado pela proibição, que facilitava a ação de charlatães, intrometidos e gente não habilitada em geral. A legalização, prometia-se, obrigaria a realizar o aborto em condições medicamente aceitáveis, portanto diminuindo o número de casos. Qual foi o resultado? No primeiro ano, o número de abortos nos EUA subiu de 100 mil para um milhão e não parou de crescer até hoje. Pelo menos 30 milhões de bebês já foram sacrificados, ao mesmo tempo que os apologistas da legalização, em vez de admitir a falácia do seu argumento inicial, festejam o fato consumado, tratando de marginalizar e criminalizar qualquer crítica ao novo estado de coisas.
3) Quando os esquerdistas norte-americanos inventaram a política de quotas e indenizações conhecida como “affirmative action”, alegavam que ela diminuiria a criminalidade entre a população negra. Oficializada a nova política, o número de crimes cometidos por negros contra brancos aumentou significativamente, segundo estatísticas do FBI. Que fizeram então os apóstolos da “affirmative action”? Reconheceram humildemente que reforçar o sentimento de identidade racial era alimentar preconceitos e conflitos de raça? Nada. Celebraram o aumento da hostilidade racial como um progresso da democracia.
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